Solange Couto, a famosa “Dona Jura” da novela “O Clone” (2001), possui 34 anos de carreira e fez 37 personagens. E enquanto isso poderia ser motivo para comemoração, a atriz, na verdade, não está muito contente. É que 25 dos seus papéis foram empregadas ou escravas, o que é equivale a 68% de todas as mulheres interpretadas por ela.
“Eu não tinha percebido que só cinco de trinta e sete personagens eram pessoas médio ou bem posicionadas no mundo”, contou a artista.
O desabafo de Solange faz parte da campanha #SentiNaPele, idealizada pelo ator Ernesto Xavier, que reúne depoimentos de negros sobre racismo, e cuja iniciativa assemelha-se ao projeto fotográfico da estudante universitária, Lorena Monique, o “Ah, Branco, Dá Um Tempo”. Ambos possuem a mesma proposta: denunciar a discriminação racial por meio de relatos de pessoas negras.
“A gente percebia que as pessoas às vezes tinham receio de falar. Ficavam com as histórias dentro delas e isso não é bom. Quando alguém se abre e fala, a pessoa se sente incentivada, vê que tem gente que sofreu algo semelhante. Isso é muito importante pra quem é negro e pra quem não é. Não existe meio de comunicação mais democrático que a internet. Todos ali têm voz. E é importante falar e insistir no ponto pra mostrar que isso não é natural, que não pode ser natural”, explicou Ernesto à versão online do jornal Extra.
Ao mesmo tempo, a manifestação da atriz Solange Couto elucida uma outra questão: a representação do negro nas novelas. É como se a mídia quisesse reforçar que há apenas um lugar para os negros na sociedade: o de servir. “O problema não era fazer empregados, mas é que esses personagens viviam a reboque. Essa era a questão, não tinham uma história própria, estavam a serviço de outros personagens”, resumiu a atriz Zezé Motta, uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado, em um texto publicado no Facebook.
Não somente são representados em funções subalternas e sem uma história própria, como também são minorias nas produções, ainda que a maioria a população brasileira seja negra (53%, de acordo com o IBGE). Pegue a novela “I Love Paraisópolis” como exemplo: o folhetim é baseado na maior favela de São Paulo, onde 70% da população se declara negra, porém, no elenco, apenas seis dos 52 atores são negros.
“Acho que esse é um problema instalado no Brasil e no mundo. Ainda tem um reflexo de 500 anos atrás de preconceito, e é algo que os movimentos vão lutando para que isso possa ser modificado. Infelizmente isso ainda rola”, comentou Juliana Gonçalves Rodrigues, vice-presidente da União dos Moradores e Comerciantes de Paraisópolis, e negra, à reportagem do Portal Terra. “Nós não queremos mais ser representados só no papel de empregada doméstica, de faxineiro, zelador.”
Atores negros ocuparem papéis de pessoas bem-sucedidas não é ignorar o fato de que essa população ainda é a maioria nos sub-espaços das relações de trabalho, mas criar perspectivas de que é possível quebrar as barreiras que o racismo impõe.
Obviamente, houve um progresso na dramaturgia brasileira, mas ainda há muito o que fazer. Cabe aqui uma declaração da atriz americana Viola Davis, primeira mulher negra a ganhar um Emmy Awards, em setembro deste ano.
“As pessoas precisam entender que há uma linha e que há uma diferença quando se trata de atores negros nessa indústria. Não é uma acusação. Estou muito feliz com várias coisas que aconteceram na minha carreira. Sou abençoada. Mas foram 67 anos até que uma atriz negra ganhasse, então houve uma linha, com certeza. E ela precisa ser reconhecida.”
E é passada a hora de que o Brasil também reconheça e ultrapasse essa linha. A realidade não espera.