Ir ao cinema assistir “Aquarius” parece ter se tornado um ato contra o retrocesso que permeia a atual política brasileira. Isso desde que o elenco e equipe do filme, em sua passagem pelo tapete vermelho do Festival de Cannes, chamou a atenção para o momento político do país, com cartazes que denunciavam um golpe. De lá para cá, a produção dirigida pelo pernambucano Kleber Mendonça Filho (“O Som Ao Redor”) se viu rodeada de polêmicas.
O Ministério da Cultura chegou inicialmente a classificar o filme para maiores de 18 anos, o que foi interpretado como um contra-ataque à expressa oposição da equipe ao então governo interino de Michel Temer. Membros da comissão que seleciona o representante do Brasil no Oscar eram expressamente contrários a indicação de “Aquarius” – o que levou outras produções que disputavam a vaga, como “Boi Neon” e “Mãe Só Há Uma”, a se retirarem da seleção em apoio ao filme.
Por fim, “Aquarius” se tornou, mesmo antes da estreia nos cinemas brasileiros, um símbolo de resistência.

Não por acaso, resistir é o tema central do filme. Apesar de não ser o que se costuma chamar de um filme político, “Aquarius” traz consigo a imagem do Brasil de hoje. Estão lá, escancarados ou nas sutilezas narrativas, todos os conflitos da nossa sociedade, as tensões entre o arcaico e o moderno, suas contradições.
Não houvesse a polêmica toda em torno do filme, ele ainda assim poderia ser visto como retrato crítico das nossas frágeis estruturas sociais e políticas. O que veio depois, e que é externo a ele – do protesto em Cannes aos aplausos e gritos de “Fora Temer” no final das sessões no fim de semana de estreia nas salas do país -, serve para legitimar esse posicionamento que já está no filme.
A verdade é que “Aquarius” se bastaria simplesmente por ter Sonia Braga, essa grande atriz do nosso cinema, e sua interpretação forte e delicada, uma presença que preenche todo o filme. Sua personagem, Clara, traz consigo todos os sentimentos do mundo, e ao mesmo tempo é quase como se nunca chegássemos perto demais para a conhecermos de verdade.
O filme todo trabalha com essa sensação, entre o distanciamento de quem espia a vida cotidiana através do buraco de uma fechadura, e o profundo mergulho na alma das personagens, em suas histórias que se misturam às histórias dos objetos, dos móveis, dos lugares onde vivem.
Mas não se engane. “Aquarius” não se resume a uma ode ao passado e à nostalgia. A resistência de Clara em vender seu apartamento, o único ainda ocupado no edifício Aquarius, para uma construtora que pretende demolir o antigo prédio, é a resistência da vida e da memória, hoje é tão facilmente (e muitas vezes brutalmente) substituídas pela ilusão do novo.
Nesse sentido, a personagem do jovem engenheiro responsável pela obra do novo prédio é o antagonista perfeito. O ator que o interpreta, o ótimo Humberto Carrão, assim como o restante do notável elenco, não passa batido.
Como também a direção de Kleber Mendonça Filho, que chama a atenção pelos detalhes, os cortes, a excelente decupagem, os recursos narrativos tão bem utilizados, ao mesmo tempo em que faz o papel de espectador, deixando que as ações se instaurem em seu próprio tempo. Tudo em “Aquarius” está vivo, e existe em uma urgência, um assombro. O perigo ronda a personagem, mas nunca está onde se espera. Há uma trilha de suspense permeando os momentos cotidianos.
“Aquarius” confirma – como se ainda fosse necessário – a força do novo cinema pernambucano. Mais uma prova da relevância técnica e estética das produções artísticas fora do eixo Rio-São Paulo. Outra grande razão para assistir ao filme.
Motivos para ir ao cinema não faltam. O Aquarius é um país inteiro (talvez um mundo todo) dentro de um edifício. Dentro de um filme. O que são os filmes se não pequenos infinitos organizados do caos?